Pesquisa mostra que gestantes presas não conseguem prisão domiciliar

Os dispositivos previstos no Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) não estão sendo aplicados às mulheres que teriam direito à prisão domiciliar, conforme descrito na lei sancionada em 2016, que ampliou as possibilidades dessa modelo de prisão para mulheres presas provisoriamente quando gestantes, mães de crianças com até 12 anos, ou cujos filhos sejam portadores de deficiência.

A constatação é do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a partir do relatório “Diagnóstico da Aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o Desencarceramento de Mulheres”, lançado hoje (4) na capital paulista e que analisou o caso de 601 mulheres divididas em três momentos do processo: audiência de custódia, processo de instrução e processos que recorreram a tribunais superiores.

A pesquisadora do ITTC, Irene Maestro, disse que existe uma forte resistência do judiciário em aplicar a prisão domiciliar. Ela disse que, nas audiências de custódia, 83% das mulheres que eram potenciais beneficiárias tiveram o direito negado. No curso do processo, enquanto elas estavam presas no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha, 80% das potenciais beneficiárias não conseguiram a prisão domiciliar.

“A gente percebe que o judiciário julga a mulher não apenas por ter infringido a lei, mas por estar infringindo um ideal de maternidade. Os argumentos utilizados pelos juízes mostram que ser mãe e cometer um crime faz com que a maternidade dessa mulher seja deslegitimada, seja menos merecedora de proteção, que ela não mereça a manutenção do vínculo com seus filhos”, disse Irene.

DADOS

Nas audiências de custódia, 201 mulheres foram acompanhadas pela pesquisa na capital paulista, das quais 120 casos consistiam em potenciais beneficiárias da prisão domiciliar. Para 65 dos 120, houve determinação da liberdade provisória. As 55 mulheres restantes, que se encaixavam nos critérios do marco legal, tiveram decretada a prisão preventiva. Desse total, nove tiveram a prisão preventiva convertida em prisão domiciliar e 46 tiveram a conversão negada, o que corresponde a 83,64% com direito negado.

Na análise dos processos de instrução de mais 200 mulheres atendidas pela Defensoria Pública no CDP de Franco da Rocha, identificou-se 107 mulheres que teriam direito à prisão domiciliar, sendo que 17 ficaram em liberdade, restando 90 mulheres detidas que se encaixavam nos critérios do marco legal para a prisão domiciliar. Em algum momento do processo, 18 tiveram a prisão domiciliar concedida. Ou seja, das 90 que tiveram a prisão mantida, 72 (80%) não tiveram o benefício da prisão domiciliar aplicado entre a decretação da prisão preventiva e a sentença.

“Os argumentos usados para negar domiciliar têm um forte cunho moral, uma tentativa do judiciário de regulamentar o exercício da maternidade das mulheres, de cobrar delas, exigir delas uma maternidade que, por sua origem social, racial, étnica e cultural, foi negada. Porque sendo a maioria delas mulheres pobres, jovens, negras, elas, ao serem mães, têm negado o direito ao exercício pleno da maternidade, porque não estão amparadas por uma série de políticas públicas e direitos sociais, como saúde, educação, emprego, que permitissem ela exercer essa maternidade”, disse Irene.

CORTES SUPERIORES

Na última etapa da pesquisa, o instituto acompanhou 200 decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todas relativas a mulheres que teriam direito à prisão domiciliar. Neste grupo, ao contrário dos anteriores, a maioria dos casos conseguiu a substituição da prisão preventiva pela domiciliar. Do total, 11 tiveram liberdade. Das 189 mulheres restantes, 116 tiveram concedida a domiciliar e 73 tiveram o pedido negado. A taxa de concessões de prisão domiciliar nos Tribunais Superiores foi de 61,37% e a de negativas é de 38,62%.

Irene disse que, apesar da maior taxa de concessão de prisão domiciliar nos tribunais superiores, nem todas as mulheres conseguem acessar esse nível da Justiça. “As mulheres que chegam ao STF e ao STJ, a maioria tem advogado constituído, ou seja, não são atendidas pela Defensoria Pública”, disse.

A pesquisadora disse que, nos tribunais superiores, as especificidades da mulher não aparecem para o desembargador que vai julgar. Ela está despida das suas características de raça, de classe e todas as especificidades da sua realidade. “Isso reforça para gente que os argumentos utilizados para negar [prisão domiciliar] conjugam a criminalização de determinadas condutas, especialmente, o tráfico de drogas, com o julgamento moral sobre a maternidade”.

HABEAS CORPUS COLETIVO

Em fevereiro de 2018, o STF reforçou a lei do Marco Legal da Primeira Infância pelo Habeas Corpus Coletivo nº 143.641. Em dezembro daquele mesmo ano, foi promulgada a Lei 13.769, estabelecendo critérios objetivos para a substituição da prisão preventiva por domiciliar.

“O marco legal traz critérios objetivos. Se a mulher for mãe de criança até 12 anos ou filho portador de deficiência ou for gestante, ela tem direito a ter sua prisão convertida em domiciliar. Mas os juízes utilizam uma série de argumentos, desde reincidência, risco à segurança pública, até que a maternidade é incompatível com o crime. Misturam-se uma série de argumentos que não estão previstos na lei e que são manejados subjetivamente e discricionariamente pelos juízes para negar o direito à [prisão] domiciliar”, disse a pesquisadora.

Segundo Irene, o habeas corpus coletivo trouxe algumas exceções à aplicação do marco legal, como o crime ter sido cometido contra os descendentes, ou seja, contra os próprios filhos ou contra aqueles que dependem dela, mas a quantidade de crimes dessa natureza identificados na amostra da pesquisa do ITTC foi insignificante.

Outra exceção é em relação a crimes cometidos com violência ou grave ameaça. “O que a gente viu é que não são os crimes dessa natureza que levam os juízes a negar. Então a maioria das mulheres que a gente analisou estão sendo acusadas de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, como tráfico de drogas ou furto. Mas os juízes consideram o tráfico como um crime gravíssimo”.

Fonte: Camila Boehm – Agência Brasil