Trabalhar para comer

João Guilherme Sabino Ometto*
Desde o início de minha carreira na agroindústria, nos idos dos anos 1960, sempre pensei que o grande desafio futuro do setor seria conciliar a segurança alimentar e a preservação ambiental. Constato que este amanhã de minhas preocupações na juventude chegou de modo mais rápido e contundente. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em seu mais recente relatório, aponta que “a agricultura, a silvicultura e outros tipos de uso do solo representam 23% das emissões humanas de gases do efeito estufa”.

É fundamental, portanto, adotar medidas eficazes e rápidas para reduzir o impacto ambiental da produção de alimentos e outros produtos agropecuários. Nesse sentido, o Brasil tem sido um dos protagonistas, pois nosso meio rural aumentou a produtividade nos últimos 40 anos, produzindo muito mais em áreas proporcionalmente cada vez menores. Além disso, grandes porções de matas nativas e mananciais hídricos são preservados dentro das propriedades. O RenovaBio, programa avançado em termos de créditos de carbono, e o potencial do mercado de títulos verdes são outras contribuições do setor.

Por outro lado, um dado do relatório do IPCC desperta particular apreensão: um terço da comida produzida no mundo é desperdiçado, por diferentes causas, inclusive em países desenvolvidos e, de modo mais acentuado, nas nações em desenvolvimento. Solucionar o problema diminuiria muito as emissões de gases do efeito estufa e melhoraria a segurança alimentar. Então, fui verificar como acontecem tais perdas. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 54% dos desperdícios ocorrem na manipulação pós-colheita e a armazenagem. Os outros 46%, nas etapas de processamento, distribuição e consumo.

Em nosso país, a situação também é grave. Segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), das 140 milhões de toneladas de alimentos que produzimos por ano, 26 milhões são desperdiçadas. Recente estudo da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) mostra que 40% das perdas ocorrem na distribuição após o processamento. Dados recentes do IBGE demonstram que a comida desperdiçada no Brasil seria suficiente para suprir os mais de 10 milhões de pessoas hoje afetadas pela insegurança alimentar, agravada pela pandemia da Covid-19. Perdas pelo caminho chegam a 50% no transporte rodoviário, devido à precariedade das estradas e a demora para que as cargas cheguem aos locais de distribuição.

A essa questão da logística, acrescento alerta do estudo Impactos das Mudanças Climáticas na Produção Agrícola Brasileira, realizado em conjunto pela Embrapa, Universidade de Campinas (Unicamp), Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE) e Banco Mundial. O trabalho, divulgado em 2013, mostrou que o enfrentamento do problema no Brasil exigia elevar de modo expressivo a produtividade das lavouras e pastagens, bem como reduzir o desmatamento. Também alertou que o aquecimento terrestre prejudicará muito a agricultura, devido a fatores como redução da quantidade do fluxo de água, afetando a irrigação, aumento da aridez, degradação da terra e desertificação.

Fizemos parte da lição de casa necessária: nos últimos 40 anos, nossa área plantada expandiu-se em 33%, mas a produção agrícola teve crescimento de 386%, com enorme ganho de produtividade, revela a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Ademais, avançamos na produção de biocombustíveis, em especial o etanol, e bioenergia, contribuições importantes do setor rural à redução dos gases de efeito estufa. Agora, além de dar continuidade a essas iniciativas, urge investir em infraestrutura de transportes, logística e armazenamento, para reduzir o desperdício. Também é premente estancar o desmatamento, que, segundo o Climate Watch, plataforma do World Resources Institute, responde por 44% da emissão de gases de efeito estufa no País.

Em 2050, conforme projeções das Nações Unidas, a população mundial deverá ser superior a nove bilhões de habitantes. Objetivando produzir comida em quantidade suficiente para suprir essa demanda, não podem mais ser adiadas medidas que garantam a sustentabilidade da agropecuária, estanquem o desperdício e protejam o setor das consequências gerais da degradação ambiental. O desafio é grande. Mais do que nunca, a humanidade terá de trabalhar muito para comer.

*João Guilherme Sabino Ometto é engenheiro (Escola de Engenharia de São Carlos – EESC/USP), empresário e membro da Academia Nacional de Agricultura (ANA).