Sempre que dá início a uma empreitada, a professora Jane Cleide Alves Hir, 64 anos, agradece à avó paterna. Grande inspiração da docente, a avó foi a responsável por fazer florescer em Jane o gosto pela leitura e pelo ensinar. Na infância e adolescência, ela lia grandes clássicos da literatura brasileira, em especial os de José de Alencar, e tinha como hobbies ler revistas como Manchete e O Cruzeiro. Acontece que até os 30 anos de idade, Jane nunca tinha pisado em uma sala de aula.
Hoje ela é professora de adultos privados de liberdade, no Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos (Ceebja) Doutor Mário Faraco, de Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba. É o maior e mais antigo Ceebja do sistema prisional paranaense.
Pernambucana criada na periferia do Rio de Janeiro, Jane é mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná e desde 2013. Foi alfabetizada e aprendeu as operações matemáticas em casa, com a avó – que só tinha estudado até o segundo ano do primário, mas era exímia leitora.
“Ela não alfabetizou só a mim e meus irmãos, mas um bairro inteiro. Foi uma pequena revolução. Sabe como eram meus cadernos? Eram feitos de papel de embrulhar pão, que minha avó esticava com ferro de carvão, desenhava as linhas e costurava com barbante. Não é o material que faz a diferença no processo de ensino e aprendizagem. O diferencial é muito mais profundo que isso”, conta Jane.
A CHEGADA À SALA DE AULA
Ao mesmo tempo em que considera sua história “um tanto singular”, a professora diz ter certeza de que a trajetória é parecida com a de tantos outros brasileiros. Filha de nordestinos que migraram para a Baixada Fluminense quando ela tinha 4 anos, a mais velha de 14 irmãos foi criada em ambiente humilde, mas de muita riqueza cultural. Casou aos 16 anos, letrada e leitora, mas sem nenhuma escolaridade formal.
“Foi só quando meu filho mais velho entrou no antigo Ginásio que senti dificuldade em ajudá-lo com as lições. Aí eu pensei ‘por que não estudar?’”, relembra. Tentou algumas vezes, mas por questões familiares, horários que não batiam, distância e falta de transporte, acabou abandonando, como é relativamente comum entre alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A chegada definitiva à sala de aula aconteceu quando a família se mudou para Maricá (RJ), na Região dos Lagos. Jane conta que se lembra até hoje do carro de som anunciando um supletivo na cidade. Após fazer vários testes de reclassificação, sem ter noção do tanto que já sabia por conta das aulas da avó e como autodidata, precisou cursar apenas um ano do ensino básico. Depois, decidiu se inscrever num curso de Magistério e foi aprovada. Ela, que já tinha passado dos 30 anos, conta que era a aluna mais velha da turma. Desde então, não parou mais de estudar.
PROFESSORA JANE
Hoje professora de adultos privados de liberdade, Jane elege a acolhida como princípio básico da EJA. Para exemplificar, tem uma história que ela sempre gosta de contar: ““Antes de entrar na escola onde conclui o supletivo, tentei estudar em outras instituições. Numa dessas, quando cheguei, a atendente estava fazendo tricô, muito concentrada. Eu, de família pobre, já cheguei encolhidinha, com medo, porque é assim que muitos alunos da EJA chegam. Foi uma situação angustiante. Eu decidi chamá-la e, a muito custo, ela largou o tricô. Eu era letrada, talvez já tivesse até lido mais livros do que ela, mas não tinha experiência com textos burocráticos. Pedi ajuda para preencher a ficha cadastral e a moça disse ‘se não sabe ler, a porta da sua inscrição é outra’. Eu só pensei ‘como assim não sei ler?’. O que eu lia!”, narra Jane, que hoje se diverte com a história.”
Para ela, o causo mostra como o “olho no olho” por parte das equipes das escolas é importante desde o primeiro contato com o aluno. A vida acabou trazendo Jane para o Paraná. Primeiro em Guarapuava (Centro) e depois, Curitiba. Na capital paranaense, cursou Letras e trabalhou na Educação municipal e depois passou em concurso da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte, atuando com o Ensino Médio. Antes, porém, deu aula para turmas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, em escolas particulares.
No Ceebja Doutor Mário Faraco, no Complexo Prisional de Piraquara (Região Metropolitana de Curitiba), ela trabalha com a chamada Fase I da EJA, está desde 2013. Sua experiência com o público privado de liberdade, inclusive, foi tema de sua dissertação no Mestrado em Educação da UFPR – “A escrita como procedimento de autoria na EJA no contexto prisional” –, concluído em 2017.
PLANTANDO SEMENTES
Quando questionada sobre a diferença entre atuar na EJA prisional e no ensino regular, Jane não nega ser “emocionalmente pesado” trabalhar com pessoas presas, que muitas vezes estão desiludidas com a vida e que não terão um acompanhamento adequado assim que deixarem a prisão. Por outro lado, acredita que seu trabalho consiste em “plantar sementes”.
““Existe uma riqueza muito grande ao perceber que os valores que tenho para mim e para a minha família são os mesmos que eles [presos] têm. Confiança, respeito. Em essência, o que esse espaço me ensina é que para eu trabalhar aqui, preciso me contatar com eles enquanto seres humanos, independentemente de suas trajetórias de vida””, afirma.
Outro ponto que Jane destaca é que, ao contrário do ensino regular, seu planejamento na EJA prisional não é feito com base em semanas ou meses, mas em dias. As aulas, segundo ela, precisam ter início, meio e fim, porque nunca é possível saber com certeza até quando os estudantes estarão presos e, consequentemente, serão seus alunos.
“A sequência didática é a cotidiana. Se ele não vier amanhã, eu tenho que ter deixado minha marca. E essa marca está além do conteúdo. Tem que ser uma marca de mobilização, da promoção de uma sensação de capacidade no outro. Uma marca da acolhida”, explica.
Em paralelo às aulas, a professora desenvolve projetos de escrita com seus alunos do sistema prisional. Em 2018, idealizou a iniciativa “A Escrita que Mora em Mim”, compilado de poemas e pequenas histórias autorais de suas alunas do presídio feminino.
““Se a autoria é importante para quem está fora, pensa como é para quem está aqui dentro. É uma ressignificação da identidade. Quando entreguei os livrinhos, uma aluna viu o nome dela e falou ‘até agora eu só tinha sido autora de crime’. Aqui dentro, a autoria é uma questão de reinserção””, diz Jane, que tem como filosofia de vida a crença nas mudanças cotidianas. “A mudança começa dentro de nós. A partir do momento em que você muda, ‘contamina’ outras pessoas, uma ‘contaminação’ boa. Cada vez mais acredito nisso”.
GARANTIA
O Paraná, por meio da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte, garante acesso à alfabetização, à escolarização básica e à formação superior a aproximadamente 36% dos presos que cumprem pena nas 33 unidades prisionais do estado.
Na Unidade de Progressão da Penitenciária Central do Estado, todos os 288 presos estudam e trabalham. Em 2017, quando completou dois anos de existência, a unidade foi considerada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) um modelo em tratamento penal. Além da alfabetização, os apenados têm a oportunidade de concluir o Ensino Fundamental e Médio, por meio da EJA, e ingressar no Ensino Superior.
A cada 12 horas de estudos, os presos têm um dia a menos de pena para cumprir, e a cada livro lido, são reduzidos quatro dias de pena. É preciso fazer um resumo e análise crítica da obra, avaliada pelo docente da sala de remição da pena pela leitura.
Fonte: Agência Estadual de Notícias do Paraná