Foi no entardecer de uma tarde qualquer, nestes dias em que o sol se põe tão repente, e o lusco-fusco se instala feito dono da noite. Mesmo inquietas em buscar abrigo entre a folhagem das árvores do Bosque João XXIII, ao lado do Santuário Eucarístico, as pombas, eternas habitantes daquele lugar resolveram se reunir. Ansiosas pulavam de lá para cá, de galho em galho, ciscando entre a ramagem rasteira da grama. Enfim, estavam em um enorme grupo, alvoroçadas, em assembleia, manifestando descontentamento, voando em descompassos. A passarada não estava só; alguns bem-te-vis matreiros ficavam assobiando por ali, aumentando a algazarra. Juntaram-se a eles um bando de pardais desassossegados também. O grupo heterogêneo queria mesmo se manifestar, mas na desordem dos voos não conseguiam se organizar. Eu olhava tudo aquilo me perguntando o que os inquietava tanto, até que uma pomba acinzentada, de porte esbelto, resolveu tomar a frente daquele movimento e pousou num galho mais baixo e desabafou, arrulhando sem parar, turturilhando, olhando bem nos meus olhos, pedindo ajuda. Devagar fui entendendo a razão daquele protesto, onde centenas de pássaros comuns, agora, ouviam atentamente o arrulhar da pomba cinzenta. Ela me falava de suas origens, bem antes da fundação da cidade; não que vivessem tanto tempo, mas em nome dos antepassados que habitaram aquelas árvores centenárias que rodeiam a Igreja. Falaram que tinham moradia permanente naquele lugar e que ainda ocupam aquele lugar muito antes do homem traçar o mapa da cidade. Garantiram para mim que se elas não têm escritura do terreno, pelo menos tem a posse há algumas centenas de anos. Argumentaram que elas estavam sendo incomodadas em todo final de tarde, justamente, quando cansadas de um dia com voos intermináveis se recolhiam entre as folhas para descansar. Que o silêncio do sono delas estava sendo perturbado e elas não tinham a quem reclamar, pois, são animais que passam sempre despercebidos e como suas plumagens não encantam ninguém, salvo alguns bem te vis vaidosos, elas estavam sendo depreciadas e molestadas em suas moradias permanentes naquele bosque. Até argumentaram o direito de usucapião urbano e a lei das contravenções penais, que provocavam o desassossego noturno.
Enquanto o grupo barulhento voava daqui para lá e de lá para cá, fui me lembrando do dia em que levei um grupo de cianortenses que não mora mais aqui, para conhecer a mais linda expressão da Via Crucis, idealizada pelo artista cianortense Aristeo Piovezan, no meio do Bosque João XXIII. Meus amigos encantaram-se com o significado de cada escultura talhada a mão, onde do ferro, Aristeo conseguiu arrancar a expressão da dor e do sofrimento. Placas com dizeres explicativos tornavam a obra mais significativa, até onde se pudesse ler, porque as mesmas pombas que protestavam agora, com seus excrementos abundantes conseguiram tornar os dizeres das placas ilegíveis.
Resolvi interromper os assobios, os arrulhos e os chilreios dos pássaros, para entendê-las melhor, quando de repente uma pessoa, e já estava um pouco escuro, começou a acender rojões aqui e ali no meio das árvores e que foram explodindo um a um; quando o barulho do primeiro estouro rugiu no espaço, espantou a passarada, acabou de vez com a assembleia. Em voos frenéticos elas partiram em todas as direções em busca de novos abrigos. Lamentei que a assembleia terminasse sem que o direito das pombas fosse restabelecido. Lamentei que o direito dos homens fosse transgredido. Lamentei também que nem sempre as pombas tem razão. Lamentei, finalmente, por não ser capaz de formar juízo!
Izaura varella